«As pandemias tendem a aumentar a desigualdade.» Grace Blakeley, autora de O Choque do Coronavírus, fala do enorme impacto que a COVID-19 terá na economia e não só. Leia a entrevista com a autora.
Quão diferente é esta recessão global de outras recessões de um passado recente? O que devemos recear mais?
As pandemias tendem a aumentar a desigualdade. O que observamos da História e a mais recente pesquisa económica sugerem que o fosso entre ricos e pobres aumentou entre e durante as pandemias mais recentes – da SARS, à Peste Suína e ao Ébola. Esta não é diferente.
Está a tornar‑se cada vez mais óbvio que a pandemia por COVID‑19 está a ser vivida em duas metades. Profissionais ricos têm uma probabilidade desproporcional de manter os seus empregos, de possuir as suas próprias casas e de ter pensões privadas. Os seus salários permaneceram relativamente altos, tiveram moratórias relativamente às suas hipotecas e foram forçados a reduzir os seus gastos ao essencial.
A diferença entre gastos e receita foi acompanhada por uma poupança maior. No Reino Unido, a taxa de poupança atingiu 27% das receitas disponíveis no segundo trimestre de 2020, uma subida relativamente aos 6,3% no terceiro trimestre de 2019. Nos Estados Unidos, as taxas foram de 25,8% e 7,2%, respectivamente. Isso representa uma inversão da tendência pré‑pandémica de aumento da dívida das famílias no mundo rico. O dinheiro poupado foi investido nos mercados financeiros ou imobiliários, que se distanciaram da economia real.
Para outros, a experiência foi completamente diferente. Aqueles que tinham baixos rendimentos antes da pandemia têm uma probabilidade desproporcional ou de perder os seus empregos ou de assistir a uma quebra nos salários.
Se ainda tiverem trabalho, as pessoas deste grupo têm uma menor probabilidade de trabalhar a partir de casa, o que significa que ainda têm as despesas das deslocações. A probabilidade de virem a contrair o vírus é também desproporcional
E alguns sectores da economia têm sido mais afectados do que outros. Os que trabalham em viagens, no retalho, na hotelaria e noutros empregos de serviços ao consumidor estão na linha da frente de uma crise de desemprego.
Há ainda a população jovem: aqueles que no que concerne a educação viram a sua aprendizagem profundamente afectada. Para os jovens que vão para o mercado de trabalho, as coisas não parecem muito melhores. Os que entram no mercado de trabalho durante as recessões experimentam um efeito «que deixa marcas» nos seus rendimentos, o que reduz os seus ganhos ao longo da vida. Os que acabam por sofrer de desemprego de longa duração podem sentir enorme dificuldade em encontrar um emprego regular nos próximos anos.
Além de aumentar a desigualdade no interior de cada sociedade, a pandemia está também a aumentar a desigualdade entre sociedades. O Sul Global está a enfrentar uma crise a uma escala sem precedentes.
Quais são as principais consequências políticas, económicas e sociais desta crise global?
Além do aumento da desigualdade, as consequências da pandemia serão significativas. Uma pesquisa da McKinsey sugere que no Norte Global muitos dos empregos com tendência para automação são também aqueles que correm maior risco quanto ao impacto económico da pandemia. Enquanto isso, o crescimento da economia digital que se tem verificado durante a pandemia apenas reforçará os empregadores que «recorrem a trabalhadores independentes» e consolidará o poder dos grandes monopólios de tecnologia.
Mesmo com o aprofundamento da crise, os mercados de acções provavelmente continuarão a distanciar‑se da economia real. Fornecer uma quantidade quase ilimitada de dinheiro barato durante uma recessão ao mesmo tempo que fracassa o uso de uma política fiscal para criar novas oportunidades de investimento viáveis (por exemplo, através de financiamento público a pesquisa e desenvolvimento de tecnologias verdes) impulsiona a desigualdade na riqueza, a volatilidade e concentração de mercado.
O aumento da concentração do mercado é uma tendência particularmente preocupante numa era já marcada por níveis extraordinários de poder monopolista.
No Sul Global, conforme o relatório de Comércio e Desenvolvimento mais recente da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), mais de 500 milhões de empregos em todo o mundo estão em risco durante a crise e pelo menos 100 milhões não serão recuperados. E esta é apenas metade da história. Grande parte da população mundial nunca teve um emprego formal; para esses o futuro parece particularmente sombrio. Entre 90 e 120 milhões de pessoas provavelmente serão empurradas para a pobreza extrema pela pandemia.
O relatório da UNCTAD menciona as condições de trabalho precárias, os altos níveis de endividamento e a pressão dos mercados financeiros internacionais como os principais constrangimentos aos Estados do Sul Global que procuram responder à crise. O relatório afirma que o Sul Global enfrenta uma lacuna de financiamento de 2 a 3 biliões de dólares como resultado da pandemia. Se essa lacuna não for preenchida, muitos desses Estados simplesmente não conseguirão implementar as medidas de saúde pública e de apoio ao emprego necessárias para lidar com a crise.
O que a pandemia tornou claro foi que somos sonâmbulos num mundo sem futuro – um mundo que enfrenta graves problemas climáticos, desemprego estrutural e quebras nos padrões de vida, e no qual o peso de cada uma destas questões irá recair de forma mais pesada sobre os mais pobres. A recuperação da pandemia pode ser a nossa última oportunidade para mudar o rumo; devemos usá‑la para exigir um novo Acordo Verde Global.
Já todos percebemos que a pandemia continuará por um tempo considerável. Os governos estão a dispender somas elevadas para lidar com esta situação. Parece que a única solução para todos é ficar a «pagar a conta» por muitos anos. Que solução global vê como possível para minimizar os efeitos desta crise?
Como afirmou um jornalista no Reino Unido, os Estados ricos do Norte Global não «esgotaram» os seus cartões de crédito. Um país que é capaz de criar dinheiro ex nihilo não pode, em nenhum sentido significativo, «ficar sem dinheiro». Num ambiente de alto risco e baixas taxas de juros, em que os próprios bancos centrais detêm uma parte significativa das dívidas dos seus países, os investidores procuram títulos de economias poderosas como os Estados Unidos e a Alemanha.
Com taxas de juros muito baixas, os empréstimos para esses Estados são muito baratos. Muitos têm atravessado décadas de subinvestimento, o que reduziu a produtividade, restringindo a produção e, portanto, as receitas fiscais: a austeridade tem sido contraproducente.
A forma de conseguir uma recuperação robusta será investir na descarbonização, a criação de novos empregos e o aumento da produtividade a longo prazo. Os governos devem investir na criação de empregos em áreas como pesquisa e desenvolvimento, engenharia e construção, saúde e assistência social, o que não só apoiará a recuperação, como ajudará o Reino Unido a lidar com questões de longo prazo de degradação climática e envelhecimento populacional.
Um pacote de estímulos verde provavelmente criará três vezes mais empregos do que um pacote de estímulos «castanho» [assente na utilização/exploração de combustíveis fósseis] e a criação de empregos na economia de cuidados tem uma probabilidade desproporcional de apoiar as mulheres da classe trabalhadora – um dos grupos mais atingidos pela austeridade. Esse investimento deve ser acompanhado por uma expansão da propriedade pública, uma transformação do sector financeiro e apoio ao movimento trabalhista para garantir que as empresas privadas não obtêm a maior parte dos ganhos da generosidade do Estado. Mas mesmo um pacote keynesiano mais limitado de gastos verdes teria impacto significativo tanto em apoiar os mais afectados por esta crise quanto para descarbonizar a economia.
A situação é diferente para o Sul Global e para Estados sem controlo total sobre a sua política monetária, como os da Zona Euro.
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