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«O que há a fazer é vacinar o n.º máximo de pessoas o mais rapidamente possível, para que haja menos pessoas infectadas», defendem Carlos Fiolhais e David Marçal, autores do livro «Apanhados pelo Vírus». Leia abaixo a entrevista.

No livro falam dos perigos da infodemia. Já estamos mais esclarecidos, depois de convivermos meses com a COVID‑19 ou ainda continua a ser um tema preocupante?

Nalguns aspectos estamos mais esclarecidos. Se antes havia uma discussão relativamente alargada sobre a seriedade da situação (a ideia da «gripezinha»), hoje aqueles que a negam já são bastante minoritários. A realidade impôs‑se, face à sobrecarga dos hospitais e ao número de mortes. Nenhuma gripe teve na nossa história recente uma mortalidade minimamente comparável. Mas a desinformação continua a ser preocupante. Por exemplo, circulam disparates sobre as novas vacinas genéticas e a sua alegada capacidade de alterar «o nosso ADN». Mas há que reconhecer que os meios de comunicação social em Portugal, a partir de certa altura, procuraram sair de cima do muro entre a verdade e a mentira, onde por vezes se colocavam, deixando de dar voz a charlatães. As redes sociais também têm estado a reagir, tendo o Facebook começado a verificar alguns conteúdos relacionados com a COVID‑19.

Mas há sempre meios de propagar o disparate. Através de cadeias de mensagens no WhatsApp, por exemplo.
Ou outras redes sociais, que têm o maior gosto em acolher de braços abertos os descontentes com o Facebook...

Que factores possibilitaram a rapidez com que se chegou à disponibilidade de novas vacinas?

Por um lado, o conhecimento anterior. De facto, elas não foram inventadas de um dia para o outro. Havia tecnologias pré‑existentes  que foram adaptadas a este vírus. É o caso das vacinas de RNA mensageiro, como as da Moderna e da Pfizer/BioNTech, que estavam em investigação há quase duas décadas. Ou das vacinas de vectores virais, como a vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca. Por outro lado, a quantidade enorme de recursos, privados e públicos, colocados à disposição do desenvolvimento das vacinas.

O sucesso da ciência e das suas aplicações é o que acontece quando a investigação científica e o desenvolvimento de tecnologias são adequadamente financiados. E, além do mais, houve um enorme esforço de cooperação internacional na criação e teste de vacinas. Desde que publicámos o nosso Apanhados pelo Vírus, o desenvolvimento mais espectacular foi o surgimento de novas vacinas.

Em Portugal, quando vos parece expectável que possam ter um efeito alargado que permita «pensar» no pós‑COVID?

É difícil prever. Depende muito da evolução do programa de vacinação, que tem vindo a ser alterado. A vacinação depende de factores internos, como a nossa organização e logística, mas também, e muito, de factores externos, já que estamos totalmente dependentes do fornecimento externo de vacinas e da aprovação destas pela Agência Europeia dos Medicamentos. E depende também, claro, da evolução do vírus. Já foram identificadas novas variantes mais transmissíveis e isso pode mudar o jogo. Por um lado, o facto de prevalecerem variantes mais transmissíveis significa que precisaremos de uma maior percentagem de pessoas vacinadas para se atingir a imunidade de grupo.

Por outro, as vacinas parecem ser menos eficazes para algumas das novas variantes, embora os estudos já realizados indiquem que mesmo nesses casos as vacinas mantêm uma eficácia relevante. Se houver uma diminuição significativa da eficácia face a novas variantes, as vacinas terão de ser adaptadas, o que é perfeitamente possível, tendo em conta que as tecnologias são configuráveis. Do mesmo modo, a imunidade adquirida após‑infecção poderá ser menos eficaz com as novas variantes (há dados da África do Sul e do Brasil que sugerem essa possibilidade). Há uma corrida entre a evolução do vírus e o avanço dos programas de vacinação.

O que há a fazer é vacinar o número máximo de pessoas o mais rapidamente possível, para que haja menos pessoas infectadas e menos oportunidades de o vírus sofrer mutações. Quanto mais tempo passar, mais as novas variantes avançam, ao mesmo tempo que outras, novíssimas, aparecem. Portanto, vacinar deve ser a palavra de ordem agora, enquanto mantemos os cuidados possíveis para conter a transmissão viral. Temos esperança de que isso seja possível.


Até que ponto é que o investimento na ciência se revelou fundamental para lidar com o problema da pandemia à escala mundial? E em Portugal?

Sem investimento na ciência estaríamos numa situação muito pior. Estaríamos mesmo perdidos. A humanidade ficaria à mercê do vírus, como tantas vezes ficou ao longo da História. Nem sequer saberíamos bem o que nos tinha acontecido, com uma parte da humanidade dizimada. Até à data temos cerca de 100 milhões de casos em todo o mundo e pouco mais de dois milhões de mortes. Sem ciência o número de mortes seria provavelmente várias ordens de grandeza superior.

Na gripe espanhola houve mais de 50 milhões de mortes num mundo com muito menos gente. A ciência é um empreendimento global, no qual Portugal participa. Nenhum país – nem mesmo os Estados Unidos, o país mais rico do mundo – teria capacidade científica para responder sozinho a esta pandemia com a rapidez com que o mundo, no seu conjunto, respondeu. A ciência fez, e continua a fazer, a sua parte, num esforço global: a vacina da Pfizer/BioNTech envolve uma empresa norte‑americana e outra alemã, esta última dirigida por dois médicos de origem turca que acreditaram numa ideia de uma bioquímica húngara a trabalhar nos Estados Unidos. O que está a falhar neste momento é a produção, logística e distribuição de vacinas. Em Portugal, o nosso planeamento da vacinação.

Leia mais sobre o livro Apanhados pelo vírus - factos e mitos acerca da Covid-19 de David Marçal e Carlos Fiolhais aqui.