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«Por mais que a reivindicação de direitos seja legítima, e seria ingrata em não reconhecer a dívida que eu e a minha geração contraímos para com os mais velhos, fazer da história das mulheres uma história que se reduziria a uma história de dominação dos homens é extremamente redutor.»

O feminismo foi um movimento de emancipação. No seu livro, diz que o neofenimismo se tornou muito diferente, que defende a criminalização do desejo masculino, que procura mudar os costumes, com impacto muito negativo na cultura. Diria que os movimentos feministas hoje fazem mais mal do que bem?

Eu distingo o feminismo da década de 1970 do de hoje, o neofeminismo. Todavia, também mostro que o verme estava na fruta. O feminismo, como todos os movimentos «-ismo», é uma ideologia e funciona como tal: a dominação das mulheres pelos homens é elevada à categoria de Ideia que explicaria e proporcionaria clarificação acerca da  história das mulheres desde o início. Escrever a história das mulheres seria desenrolar o fio dessa intriga, terrivelmente, fatalmente, sumária.

Refiro-me a um cartaz do Mouvement de Libération des Femmes [Movimento de Libertação das Mulheres] afixado nas ruas de Paris na década de 1980 que mostrava o rosto de um homem comum e cuja mensagem era: «Este homem é um violador. Esse homem é um violador» −, a essencialização do homem, a ideia de que o homem é por natureza brutal, violento e, portanto, um violador e que a mulher só pode ser sempre uma vítima sua já então está presente. No entanto, esse feminismo ultrajante permanece marginal. A minha explicação é que o génio francês da mixidade de sexos, esses costumes franceses tão apreciados pelos nossos visitantes estrangeiros desde o século XVII, ainda são bastante populares em França, mesmo por mulheres e homens – não esqueçamos –, que trabalharão pela emancipação das mulheres para bloquear este feminismo radical.

Das várias correntes do feminismo que então se encontravam em disputa na França da década de 1970, triunfou o feminismo universalista, aquele que não faz da identidade da mulher em oposição à do homem, o cimento de sua luta. O objectivo do seu combate é o acesso a direitos que permitam às mulheres viver em pé de igualdade com os homens, nem mais nem menos, livremente, para decidir sobre a sua vida, e não para se rebelar contra os homens.

Esse feminismo hoje perdeu toda a legitimidade. Triunfa o feminismo identitário e vitimizador, por isso falamos de neofeminismo: a identidade feminina, a identidade de vítima, é o cimento dessas militantes, e é ela que deve ser reconhecida, exaltada... O feminismo emancipatório foi um feminismo que primeiro libertou da prisão sexual domiciliária, que permitiu dar um passo além da identidade de mulher; hoje, o feminismo, como todos os outros movimentos noutros lugares, aprisiona na identidade. É o reinado do «como»: como mulher, como negra, como muçulmana... Há algo de terrivelmente sufocante, empobrecedor, enfadonho!

Por mais que a reivindicação de direitos seja legítima, e seria ingrata em não reconhecer a dívida que eu e a minha geração contraímos para com os mais velhos, fazer da história das mulheres uma história que se reduziria a uma história de dominação dos homens é extremamente redutor e faz com que se sacrifique a variedade, a riqueza, a complexidade, o encanto, as alegrias dos laços que se estabelecem entre os homens e as mulheres. Certamente, para liderar o combate, são necessárias ideias simples, slogans, e a palavra dominação é eficaz nesse aspecto, mas é essencial circunscrever o seu campo de acção e não sacrificar toda a existência a ele, e o feminismo de hoje não conhece e não permite outras narrativas.

Como boa discípula da filósofa Hannah Arendt, só tenho uma bússola, o real: uma teoria que trai o real na sua riqueza, que condena a negar, apagar, cancelar todos os matizes, todas as complexidades, é lidar com uma teoria pouco séria.

Para terminar, a resposta à pergunta, sim, esse neofeminismo faz muito mal às nossas sociedades porque goza de toda a legitimidade política, mediática e cultural e, portanto, torna-se a grelha de leitura aceite por todos. Também é espantoso  porque é um feminismo de julgamento: os homens de ontem e de hoje são chamados a comparecer perante os tribunais, privados dos direitos mínimos que todo o acusado deve poder reivindicar. Os julgamentos são peremptórios e as execuções sumárias. Os homens caem cada vez mais.

Refere a situação em  França e nos Estados Unidos, mas também o papel das instituições europeias, no domínio legislativo (com impacto nos países da UE). Que mudança fundamental destacaria nos países europeus após o caso Weinstein?

O movimento #metoo foi decisivo, marca um antes e um depois. A sua importância é indissociável do advento das redes sociais que permitiram a formação do que chamo de grande internacional das mulheres. A legitimidade mediática e política de que beneficiou a retórica identitária e vitimizadora foi exorbitante. Os jornalistas passaram a utilizar a linguagem do activismo feminista: assédio, violência sexual sistemática, feminicídio, patriarcado ...<

O livro descreve uma visão muito negativa do feminismo actual. Para onde é que esse feminismo que descreve nos levará?

Quero acreditar que a multiplicação dessas pretensões identitárias – começando pelas das feministas – e a tirania que cada uma separa e às vezes junta (a famosa «interseccionalidade» das lutas, sendo o homem branco o íman que atrai para ele toda a limalha ideológica), acabam por causar um vasto movimento de revolta, em todo o mundo ocidental. A civilização ocidental deve recompor-se, fazer valer os seus tesouros, a sua fecundidade para a natureza humana, deve reconquistar a confiança, a fé em si mesma. Não, a história do Ocidente não é uma longa história de dominação, pelo contrário, é aquela que mais favoreceu o desabrochar das mais nobres possibilidades humanas e continuou a expandir o acesso a todos os que viviam nessas terras. Não devemos deixar a última palavra para as chamadas almas «ofendidas».

Podemos adivinhar uma certa impaciência nas pessoas. Uma consciência crescente a cada dia que passa dos efeitos nocivos dessa captura da vida pelas identidades, do terreno que elas conquistam que elas tomam. A prática desta nova forma de censura chamada «cancelar a cultura» é entendida com alguma ansiedade. O «cancelamento da cultura» é uma guilhotina poderosa. No mínimo, deseja conseguir a morte social do indivíduo em questão. Tal como no tempo de Estaline, quando personalidades que caíam em desgraça e eram expulsas da esfera pública eram apagadas das fotos oficiais, trata-se agora de apagar, de anular, de suprimir da sociedade e da história as personagens incriminadas. E os seus promotores estão dispostos a tudo para atingir os seus objectivos.

No entanto, as coisas ganharam tal amplitude, as identidades ganharam tal legitimidade, que se pode sentir que o movimento é avassalador, que pode ser desacelerado, mas não interrompido. Não acredito, a exaltação de identidades particulares é um princípio de discórdia e guerra.